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CICLISTA “DEFICIENTE” DE PASSOS VENCE PROVA NACIONAL

Fisioterapeuta. E economista. E bancária. E portadora de deficiência. E vencedora de uma prova nacional de ciclismo. A trajetória da passense Cayra Netto mal cabe dentro dos seus 32 anos. É muita história pra pouca idade.
Um dos capítulos mais importantes desta narrativa foi escrito no último dia 15. Cayra foi vencedora do Desafio Brou na categoria PCD (Pessoas com Deficiência), competindo com homens e mulheres. A prova ocorreu no município mineiro de Sete Lagoas. Foram cinco horas pedalando em uma trilha XCO (descidas técnicas, trilhas estreitas, caminhos rochosos e até obstáculos artificiais, como rampas) de 6,5 Km. O desafio era completar seis voltas.
Seis quedas
No dia anterior, durante o reconhecimento da trilha, Cayra caiu seis vezes. Não era só pela ansiedade. O coração estava dividido entre realizar um sonho ou estar presente no batizado da pequena Elisa, sua sobrinha. O acolhimento do irmão Renan foi decisivo para ela competir. “Ele me disse que a Elisa teria muito orgulho de mim no futuro, quando soubesse que eu competi”, relembra a ciclista. A competição começaria às 09h15min do domingo.
Treinador/ Batedor/ Anjo da Guarda
Todo o percurso da mais nova passense a despontar no ciclismo foi acompanhado por Bruno Toledo. “O Bruno é um anjo na minha vida”, resume Cayra. Além de anjo, são dele as funções de treinador e “batedor” nas competições. Quando ela pensou que não conseguiria vencer o Desafio Brou, ele surgiu na retaguarda. “A Cayra sobe como se fosse uma menina com duas pernas. É inacreditável. Espero que ela nunca pare”, diz Bruno, cheio de orgulho.
Sem fêmur
Cayra nasceu sem o fêmur direito. Não viveu o drama de uma amputação. Não conheceu a vida de outra forma. Começou a usar prótese aos 10 meses de idade. Na infância, trocava de próteses quatro, cinco vezes ao ano por causa do crescimento acelerado.
Sempre fez atividade física
Não pode engordar porque o sobrepeso comprometeria a mobilidade. Além de pedalar quatro vezes na semana, faz musculação nos outros três dias. O ciclismo “pra valer” é recente em sua vida. Há 18 anos não subia em uma bicicleta. Decidiu recomeçar durante a pandemia – nesta época, nada mais adequado que atividades físicas ao ar livre. Treze de maio de 2021. Foi a data do seu primeiro pedal, com 23 Km percorridos. “Sofri pra burro”, relembra.
Unidos
A paixão pelo pedal foi instantânea. “A bicicleta não me machuca. Ela me leva a lugares a que eu jamais pensei que iria. Na bicicleta, você passa a prestar atenção a coisas que não veria se estivesse de carro.”
A união entre os ciclistas também fez a diferença. “No ciclismo eu vi o quanto as pessoas se ajudam. Eu me encontrei”.
Preconceito
Aos quatro anos, Cayra foi à missa com a mãe. Na época, usava uma prótese sem articulação. Na hora de se ajoelhar, dobrou a perna e a prótese permaneceu esticada. Alguém quis ajudá-la a se levantar. “Ela não quis ajuda. Olhou para a pessoa com aquele olhar de ‘não precisa’”, conta a mãe, Ana Sílvia de Oliveira.
Luto
Ana Sílvia plantou na filha a semente da proatividade e da aceitação do que não pode ser mudado. Aos 17 anos, teve Cayra. Nos exames pré-natais, o médico não identificou a ausência do fêmur direito. Não houve tempo para a mãe adolescente se acostumar à ideia ao longo da gestação. Só descobriu a deficiência do bebê quando estava com a filha nos braços. “A dor é meio que um luto. Mas tem que ter data de validade. Tem que acabar”, diz a Ana Sílvia.
104 viagens
Superado o impacto inicial, era hora de tomar uma atitude. Ana Sílvia foi em busca de tratamento para a filha. Os médicos eram categóricos em dizer que o bebê não iria andar. Durante os 10 primeiros meses da vida de Cayra, Ana Sílvia fez 104 viagens tentando buscar solução. Encontrou a resposta na PUC de Campinas. Uma prótese boa, funcional e cara.
Rifas
Ana Silvia, que já estava divorciada do pai de seus filhos, não perdeu tempo. Além das doações, foram muitos os eventos beneficentes de arrecadação e dinheiro para pagar as próteses – de bailes a rifas. “Todas as vezes eu que tive que pagar. Este mesmo Estado que quer incluir, não inclui as despesas. Como falar em inclusão, se o poder público não dá suporte?”, questiona Ana Sílvia.
Piedade
Ana Sílvia não titubeia para nomear a característica da filha. Cayra é “deficiente”. Sem rodeios. Sem politicamente correto. E não há nada de errado nisto. O erro, para ela, é tratar o deficiente com pena. “O olhar do outro é de piedade. Isto não deveria existir. A Cayra é a prova viva disto”, afirma, reforçando que a postura da família é fundamental na emancipação da pessoa com deficiência. “O grupo familiar pode criar uma camada de proteção. Mas o deficiente não precisa ser protegido a todo momento. Ele deve saber que, se precisar, tem suporte.”
Prótese, não! Perna:
Na casa de Cayra e Ana Sílvia não existe a palavra prótese. O aparelho está tão incorporado à vida da atleta que foi substituído pela palavra perna. É parte de seu corpo.
“Não fui poupada por ser deficiente. Devo muito à minha mãe. A nossa limitação está na nossa cabeça. Enxerguei isto na competição”, diz Cayra, que foi convidada a integrar a Federação Mineira de Ciclismo e já mais tem mais três provas em vista.
. Por: Lívia Ferreira – Verboraria.com.br