“AGLOMERAÇÕES AINDA DEVEM SER EVITADAS”, DIZ INFECTOLOGISTA
Sem rodeios, o infectologista Carlos Starling avisa: pelo resto deste ano e, provavelmente, durante boa parte do ano que vem, ainda viveremos sob liberdade vigiada.
Também não estamos livres de novos colapsos do sistema de saúde, tampouco de novos picos da epidemia. A boa notícia, pondera o médico, é que as curvas da montanha-russa serão cada vez mais brandas, graças ao avanço da vacinação e ao arsenal de recursos de combate à COVID-19 que a ciência promete entregar muito em breve – de vacinas nasais a armas imunobiológicas.
Quando o assunto são os legados da pandemia, Starling assume um tom bem mais otimista. “Ela nos ensinou a andar no escuro e achar o caminho certo. A principal herança que teremos é a da pedagogia da civilidade. A consciência de corpo planetário”, diz o infectologista.
Por quanto tempo ainda viveremos nessa espécie de “montanha-russa” de picos e quedas da pandemia, com restrições de convivência? Quais as perspectivas para os próximos seis meses?
A epidemia, apesar dos dados epidemiológicos favoráveis neste momento, ainda tem um curso longo e muito indefinido. Isso em função das variantes mais transmissíveis, das limitações da vacinação, que ainda não chegou às crianças e adolescentes. E, principalmente, por causa da fragilidade com que a epidemia tem sido conduzida no país pelo governo federal que, a cada dia, nos prega uma peça diferente.
Na quinta-feira (15/9), foi a interrupção da vacinação de adolescentes (BH e Minas decidiram na sexta-feira retomar o plano de vacinação). Então, existem as incertezas relacionadas à própria característica do vírus e as incertezas políticas, relativas às medidas que vão sendo tomadas pelo governo ao longo desse processo. Tudo isso torna o futuro epidemiológico um tanto imprevisível.
Outro aspecto importante é que as vacinas disponíveis não são esterilizantes. Ou seja: elas não evitam a transmissão do vírus. Elas evitam a forma grave da doença e reduzem de forma extremamente significativa a mortalidade, mas o vírus continua sendo transmitido. E ele continua circulando sem freio nas crianças e jovens até 17 anos, que ainda não foram vacinados. Eles representam cerca de 25% da população. Novas variantes podem surgir a partir daí.
Então, infelizmente, nós podemos ter, sim, novos colapsos do sistema de saúde e novas ondas epidêmicas. Nada impede que isso aconteça, principalmente se considerarmos a presença das variantes mais transmissíveis e, eventualmente, mais virulentas. Claro que nós vamos passar por tudo isso com um pouco mais de conforto por causa da vacinação.
Mas não podemos prescindir jamais das medidas de distanciamento social, do uso de máscaras ou da higienização das mãos. Até o fim deste ano e boa parte do ano que vem, os protocolos sanitários serão necessários. Ou melhor: até que tenhamos 80% da população completamente vacinada, com os grupos de maior risco revacinados.
Porque, agora, nós já sabemos que as vacinas disponíveis no momento têm uma eficácia muito boa, mas a imunidade cai progressivamente. Logo, nós vamos precisar de novos ciclos de vacinação e de novas vacinas que contemplem as variantes e que, se possível, sejam esterilizantes.
Isso significa que as pessoas não devem ficar muito animadas para o Natal e para o carnaval do ano que vem?
Como o senhor vislumbra que vão funcionar os ciclos de vacinação contra a COVID-19?
O futuro da vacinação, na minha opinião, vai passar por uma vacina intramuscular e uma vacina de uso nasal. É isso que a literatura está nos mostrando para um futuro muito breve. As vacinas nasais, essas sim, têm se mostrado com capacidade esterilizante, ou seja, evitam que as pessoas transmitam o vírus.
Esses imunizantes já devem estar disponíveis no próximo ano e poderemos, então, fazer combinações de estratégias. Até lá, teremos que manter os protocolos sanitários. Isso vai ajudar muito no processo de retomada da normalidade.
As perspectivas são muito boas. Podemos sim, esperar o desenvolvimento de tratamentos inovadores e realmente eficazes. Os anticorpos monoclonais são um exemplo. É um recurso direcionado a pessoas com alto risco de desenvolver formas graves da doença. Isso já é uma realidade. Esse tratamento já é disponibilizado e autorizado pela Anvisa para uso em grupos específicos, em situações específicas.
Existem também antivirais, ainda com eficácia limitada, mas que, em determinados momentos clínicos, mudam o curso da doença. Temos as drogas imunobiológicas, que também melhoram o prognóstico dos pacientes. Mas o melhor de tudo é que nós passamos a entender melhor a fisiopatologia da COVID-19. Logo, temos condição de tratar melhor os doentes porque, agora, conhecemos com mais profundidade a maneira como a infecção se desenvolve nas pessoas.
Os dados oficiais apontam 20 milhões de pessoas infectadas, mas eles são subestimados. Logo, as consequências da infecção também. Então, teremos, sim, que lidar com um contingente muito grande de pessoas com as mais diversas sequelas que vão precisar de suporte. A pandemia tem os seus reflexos no curto, médio e longo prazos.
Esse é possivelmente um reflexo de médio e longo prazos. Portanto, é razoável esperarmos um tensionamento do sistema de saúde pelas sequelas da doença. O que a gente lamenta muito é que isso poderia ter sido bastante minimizado com a condução adequada da pandemia. Estudos mostram que quatro de cada cinco óbitos poderiam ter sido evitados no país. Da mesma forma, esses quadros clínicos de sequelas.
Certamente, aprendemos demais nessa pandemia. Um dos aprendizados é que o nosso sistema de vigilância epidemiológica precisa melhorar muito. Precisamos de um incremento dos sistemas de informações epidemiológicas, especialmente da sistematização de dados. Isso tem que ser muito ágil. Epidemiologistas e infectologistas batem nessa tecla desde 2009, quando passamos pela gripe suína. O investimento em sistemas de informação é para ontem.
Mas o ponto que talvez seja mais importante é que precisamos aprender a ser mais responsáveis do ponto de vista coletivo.
O egoísmo é fatal, vimos que é incompatível com o que estamos enfrentando agora e vamos enfrentar no futuro porque, certamente, novas epidemias virão. O interesse coletivo tem que sobrepujar o interesse individual em nome da nossa sobrevivência enquanto espécie.
Nesse sentido, o SUS tem que ser muito bem estruturado. Foi ele que segurou as pontas de uma população brasileira Nós temos aí 50 milhões de pessoas que têm plano de saúde e mais de 150 milhões que não têm e que precisam ser atendidas. Quando você compromete os 150 milhões, os outros 50 milhões ficam ameaçados também.
Aliás, ficou muito claro nessa pandemia que o setor privado é tão vulnerável quanto o público, colapsou junto com ele. Em alguns momentos, colapsou mais. O fato de você ter a carteirinha de um plano de saúde nobre não garante sobrevida num contexto epidêmico. Eu espero que a população tenha percebido isso.